A maternidade compulsória é um fenômeno que reflete uma das formas mais profundas de controle sobre as mulheres, imposto por uma sociedade patriarcal que frequentemente limita a liberdade de escolha feminina, especialmente dentro das relações heteronormativas. Essa imposição de que toda mulher, como parte de seu destino, deve se tornar mãe não apenas subordina a autonomia sobre o próprio corpo, mas também engendra uma série de pressões psicológicas que afetam profundamente a saúde mental das mulheres.
A autora Thaís Basile, em sua crítica contundente, aponta que a maternidade compulsória não é apenas um desejo espontâneo ou um instinto natural da mulher, mas sim um dispositivo ideológico sustentado por valores patriarcais e discursos psicanalíticos que associam o feminino à sublimação, ao cuidado e à renúncia. Como ressalta a autora, “a maternidade é descrita pela Psicanálise como substituta fálica, ou seja, um lugar de busca de poder e importância e de ilusão de completude.” Desempenhar o papel de mãe, nesse contexto, é o único local que a sociedade patriarcal reserva à mulher, sendo esse espaço idealizado como o centro de sua identidade desde a infância.
Pressão Social e Imposição no Casamento
Em uma sociedade que ainda mantém padrões rígidos sobre o que é ser mulher, a maternidade compulsória muitas vezes se apresenta como uma expectativa inquestionável. No contexto de relações heteronormativas, isso se reflete diretamente no casamento, onde a mulher é socialmente vista como a “mãe natural” — um papel imposto tanto moral quanto culturalmente. O casamento, assim, é estruturado em torno da ideia de que a mulher deve garantir a continuidade da linhagem, sendo a maternidade o ápice dessa função.
Essa pressão se apresenta desde a infância, com meninas sendo condicionadas por meio de brinquedos e representações simbólicas a naturalizar o cuidado, a beleza, a limpeza, e a maternidade como destino. Como afirma Basile, há uma “representação social da mulher como ser para o outro e, portanto, para o cuidado; e por meio do retorno positivo que se dá às que reproduzem essas atitudes”. Desse modo, mulheres que não desejam ou que não podem ser mães enfrentam não só estigmas, mas também o silenciamento de seus desejos e a exclusão de seus corpos do espaço social legítimo.
O Corpo da Mulher Como Propriedade Social
O corpo feminino, nesse regime discursivo, deixa de ser compreendido como espaço de autonomia e se torna propriedade social. A mulher é entendida como responsável pelo cuidado e pela reprodução, e o casamento reforça essa lógica ao instituí-la como cuidadora principal. Quando essa expectativa não é cumprida, as mulheres se tornam alvo de julgamentos morais, sociais e até jurídicos.
Basile reforça que “mulheres experienciam uma série de violências afetivas no espaço doméstico, mesmo quando há recusa da maternidade”, e que esse espaço, por vezes, é o “local da hiper-responsabilização, da exclusão empoderada, da negligência e da solidão”. Isso mostra que mesmo dentro da estrutura familiar, o cuidado e a maternidade são impostos como uma forma de pertencimento ou punição: estar fora desse papel pode significar ser descartada emocionalmente ou marginalizada.
Os Prejuízos Psíquicos da Maternidade Compulsória
O impacto psicológico da maternidade compulsória é imenso e se reflete em vários níveis da vida das mulheres. A pressão para assumir esse papel pode gerar sentimentos de inadequação, ansiedade, e depressão. Como mostra Basile, a mulher é colocada “no lugar de ‘doadora’, de guerreira que se resigna”, mesmo quando não há reciprocidade emocional ou apoio. Quem já não ouviu termos como “mãe é sagrada”, “rainha do lar” ou “a mãe é aquela que padece no paraíso”?
A maternidade, que deveria ser escolha consciente e pessoal, torna-se uma obrigação social. Isso pode causar uma ruptura interna, onde a mulher se sente alienada de si mesma, sobrecarregada com demandas que não escolheu livremente. Casamentos heteronormativos, marcados pela divisão desigual das responsabilidades parentais, aprofundam esse sofrimento. A exigência de ser uma mãe perfeita, sem falhas, reforça a exaustão psíquica e o burnout materno.
Colonialismo, Maternidade e Controle
Somado a isso, o legado do colonialismo também estrutura a forma como diferentes mulheres vivenciam a maternidade. Mulheres negras e indígenas foram historicamente forçadas à maternidade como forma de exploração e manutenção da ordem colonial. Hoje, elas ainda enfrentam pressões específicas, sendo muitas vezes tratadas como reprodutoras de mão de obra ou como aquelas que devem cuidar dos filhos com poucos recursos e apoio.
A Crítica Feminista e a Busca pela Autonomia
A reflexão crítica proposta por Thaís Basile se insere em uma perspectiva feminista que busca romper com a lógica da maternidade compulsória. Essa crítica exige que o corpo feminino seja entendido como autônomo, e que a maternidade seja uma escolha, não um destino imposto.
Reconhecer a mulher como um sujeito pleno, capaz de decidir sobre sua vida, corpo e afetos, é um passo essencial para a justiça de gênero. A luta contra a maternidade compulsória é, portanto, uma luta política por liberdade e dignidade.
Basile, T. (2024). Atravessando o deserto emocional: Os impactos de fazer parte de uma família emocionalmente adoecida. São Paulo: Paidós.