“De que adianta saber-se amado depois de morto? O que te segura é que, no fundo, ainda tem esperança de que as coisas mudem. Parei de falar. Chorava tanto que os olhos, embaçados, não viam nem mais a imagem no espelho. Percebi, subitamente, que o fundo do poço não estava na morte, mas na vida. Na minha vida.” (Nery, 2012, p. 66)
O trecho retirado do livro Viagem Solitária de João W. Nery expõe de maneira profunda o sofrimento psíquico de uma pessoa transexual em uma sociedade que frequentemente nega e marginaliza suas identidades. Nery reflete uma dor intensa, onde a percepção de ser amado após a morte não traz consolo algum. A esperança de mudança mantém a pessoa em movimento, mesmo diante de um sofrimento esmagador. O autor mostra, com clareza dolorosa, que o verdadeiro “fundo do poço” não está na morte, mas na vida, que se torna insuportável devido à contínua falta de aceitação e reconhecimento de sua identidade de gênero.
A Não Aceitação e Suas Consequências
Nesse sofrimento psíquico, destaca-se como a não aceitação da transexualidade pode levar a um estado de desesperança e depressão. Pessoas transexuais frequentemente enfrentam rejeição familiar, discriminação social, violência e exclusão institucional. Esses fatores destroem a saúde mental, levando a sentimentos de isolamento, baixa autoestima e, em casos extremos, pensamentos suicidas. A rejeição sistemática não apenas aniquila a identidade da pessoa, mas também perpetua um ciclo de invisibilidade e invalidação.
A descrição de Nery sobre o choro intenso e a incapacidade de ver sua imagem no espelho simboliza a perda de identidade e a desconexão com o próprio eu. O espelho, que deveria refletir uma imagem afirmativa, torna-se um símbolo de alienação e dor. Isso destaca a experiência de um corpo dissidente, onde a imagem refletida não corresponde à identidade interna, causando sofrimento extremo. A percepção de que o fundo do poço está na vida sugere que viver sem aceitação e reconhecimento é uma tortura contínua, mais dolorosa do que a ideia da morte.
Desafios Estruturais e a Luta pela Dignidade
Além da rejeição social, pessoas transexuais enfrentam barreiras estruturais que dificultam sua plena existência na sociedade. A obtenção de documentação que reflita sua identidade de gênero ainda é um desafio, expondo-as a constrangimentos e discriminação ao acessar serviços básicos. No campo da saúde, a falta de sensibilidade e capacitação dos profissionais, junto com o estigma, dificulta o acesso a cuidados médicos adequados. No ambiente escolar, o bullying e a discriminação afetam o desempenho acadêmico e podem levar ao abandono escolar. No mercado de trabalho, a discriminação limita as oportunidades de emprego e crescimento profissional, contribuindo para a marginalização econômica.
A violência contra pessoas transexuais também é uma realidade alarmante. Muitas enfrentam agressões físicas e psicológicas diárias, além de um alto índice de homicídios. A impunidade e a falta de políticas de proteção adequadas agravam esse cenário. Além disso, a representação estereotipada na mídia perpetua preconceitos, enquanto a ausência de pessoas trans em espaços de poder limita sua capacidade de influenciar políticas públicas e lutar por seus direitos.
Caminhos para a Mudança
Para mitigar essas dificuldades, é essencial a implementação de políticas inclusivas que promovam representatividade positiva, proteção legal contra a violência e o reconhecimento pleno da identidade de gênero. O respeito e a valorização das pessoas transexuais devem ser incorporados em todas as esferas sociais, garantindo sua dignidade, igualdade e bem-estar.
A psicoterapia desempenha um papel fundamental nesse contexto, oferecendo um espaço de validação e apoio. Terapias afirmativas de gênero, como a Terapia de Acompanhamento de Transição de Gênero (GAP), são particularmente benéficas, ajudando indivíduos transexuais a processar traumas causados pela não aceitação e a desenvolver mecanismos de resiliência e autoaceitação. Além disso, o envolvimento em grupos de apoio comunitário pode oferecer um senso de pertencimento e solidariedade, essencial para a saúde mental e o bem-estar dessas pessoas.
Conclusão: A Urgência da Aceitação
O trecho de João W. Nery revela a profundidade do sofrimento psíquico causado pela não aceitação e pelo preconceito estrutural. A verdadeira mudança só pode ocorrer quando a sociedade deixar de invalidar identidades e passar a garantir direitos fundamentais às pessoas transexuais. A aceitação e o reconhecimento não são apenas questões de justiça social, mas de sobrevivência e dignidade humana. Construir um mundo mais inclusivo e respeitoso é um compromisso que deve ser assumido por todos.
Referências
NERY, João W. *Viagem Solitária: memórias de um transexual 30 anos depois*. 2. ed. Rio de Janeiro: Leya, 2012.